Há uma tendência atual a considerar critérios gerais, definidores de doenças provocadas por uso de substâncias, independentemente da substância utilizada (álcool, maconha, cocaína, anfetaminas, alucinógenos etc.). Assim, a definição de “transtornos por uso de substâncias” consiste nas manifestações cognitivas, comportamentais e fisiológicas decorrentes do uso frequente ou contínuo da substância, a despeito dos prejuízos causados por esse uso.

Sabe-se que o uso frequente ou contínuo de substâncias acarreta uma alteração no ‘circuito de recompensa’ do cérebro, alteração esta que pode persistir mesmo após a interrupção do uso. O circuito de recompensa é ativado naturalmente quando são realizadas atividades ou quando ocorrem comportamentos ligados à sensação de prazer e satisfação. No entanto, quando essa ativação se dá pelo uso de substâncias, a intensidade da ativação é muito maior e prolongada, de modo que o circuito de recompensa tem um reforço enorme e é induzido a buscar novamente a sensação prazerosa, levando à repetição incessante do comportamento que leva àquela sensação registrada na memória. Trata-se de um ‘círculo vicioso’ difícil de romper.

Há uma tendência atual a não mais separar em categorias, o uso, o abuso e a dependência de substâncias. Procura-se apenas estabelecer a gravidade do uso de substâncias, conforme a quantidade de sintomas e comportamentos associados a esse uso.

De modo resumido, os critérios de transtornos por uso de substâncias propostos pelo
Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5) são:

Adaptado do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 / American Psychiatric Association; 5ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

Dependendo da quantidade de itens presentes pode-se classificar a gravidade do uso em leve (2 a 3), moderada (4 a 5) ou grave (6 ou mais).

O uso de bebidas alcoólicas é tão antigo quanto a própria humanidade. Beber moderada e esporadicamente faz parte dos hábitos de diversas sociedades. Determinar se o consumo está dentro daquilo que é considerado “normal” e o que é considerado “problemático” é por vezes difícil, pois esses limites são tênues, variam de pessoa para pessoa e de cultura para cultura.

Estima-se que cerca de 10% das mulheres e 20% dos homens façam uso abusivo do álcool; 5% das mulheres e 10% dos homens apresentam a síndrome de dependência do álcool ou alcoolismo. Sabe-se também que o álcool está relacionado a 50% dos casos de morte em acidentes automobilísticos, 50% dos homicídios e 25% dos suicídios. Frequentemente pessoas portadoras de outras doenças mentais (por exemplo, ansiedade, pânico, fobias, depressão) apresentam também problemas relacionados ao uso de álcool.

Para compreender melhor os problemas relacionados ao alcoolismo, é importante saber de algumas definições:

Intoxicação aguda: É a condição que ocorre após a ingestão de bebidas alcoólicas. É conhecida com os mais variados nomes: Embriaguez, bebedeira e outros tantos. O grau de intoxicação depende do tipo e da quantidade de bebida ingerida, da condição física da pessoa, da rapidez da ingestão, se a pessoa está ou não em jejum, entre outros fatores. As alterações do comportamento observadas na pessoa alcoolizada se relacionam à quantidade de álcool no sangue (medido com aparelhos, por exemplo, o “bafômetro”).

Síndrome de abstinência: Se o consumo diminuir ou for interrompido subitamente aparecem sintomas físicos e psíquicos de abstinência, ou seja, da falta do álcool. A síndrome de abstinência caracteriza-se por tremores, sudorese, aumento da pulsação, náuseas, insônia, agitação, ansiedade; em casos mais graves podem ocorrer convulsões e o delirium tremens (além dos sintomas descritos, a pessoa fica confusa, começa a ter alucinações, em geral “visões” de bichos nas paredes ou andando pelo corpo). O delirium tremens é um quadro grave e necessita de tratamento hospitalar. Com frequência, após um delirium tremens, a pessoa desenvolve um quadro caracterizado por esquecimento de fatos que ocorreram recentemente. É denominado amnésia induzida pelo álcool ou síndrome de Korsakoff.

Detecção de suspeita de problemas com o álcool – Alguns questionários práticos foram desenvolvidos para ajudar a levantar a suspeita de problemas com o álcool. O mais simples deles é conhecido como CAGE (sigla em inglês, que se refere a palavras das perguntas que são formuladas) e foi desenvolvido por Mayfield e colaboradores (Mayfield, D.; McLeod, G.; and Hall, P. The CAGE questionnaire: Validation of a new alcoholism instrument. American Journal of Psychiatry 131:1121-1123, 1974). Consiste em quatro perguntas:

  1. Você já tentou diminuir ou cortar (“Cut down”) a bebida?
  2. Você já ficou incomodado ou irritado (“Annoyed”) com outros por que criticaram seu jeito de beber?
  3. Você já se sentiu culpado (“Guilty”) por causa do seu jeito de beber?
  4. Você já teve que beber para aliviar os nervos ou reduzir os efeitos de uma ressaca (“Eye-opener”)?

Se pelo menos uma resposta a essas perguntas for afirmativa (“sim”) há suspeita de problemas com o álcool. Duas ou mais respostas afirmativas é indicativo de problemas com o álcool.

Outro instrumento frequentemente utilizado para detecção de problemas com o álcool é o AUDIT (Teste de Identificação de Transtornos por Uso de Álcool [Alcohol Use Disorders Identification Test], adaptado de Méndez, E.B. (1999). Uma versão brasileira do AUDIT- Alcohol Use Disorders Identification Test. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. Disponível em:

https://www.epidemio-ufpel.org.br/uploads/teses/Brod%20Mendez%201999%20Dissert.pdf).

Teste de Identificação de Transtornos por Uso de Álcool (AUDIT).
Assinale o número que corresponde a sua resposta.

*Considere: CERVEJA: 1 copo (de chope – 350ml), 1 lata – 1 “DOSE” ou garrafa – 2 “DOSES”

VINHO: 1 copo comum grande (250ml) – 2 “DOSES” – 2 “DOSES” ou 1 garrafa – 8 “DOSES”

CACHAÇA, VODCA, UÍSQUE ou CONHAQUE: 1 “martelinho” (60ml) – 2 “DOSES” 1 “martelo” (100ml) – 3 “DOSES” OU 1 garrafa – mais de 20 “DOSES”

UISQUE, RUM, LICOR, etc.: 1 “dose de dosador” (45-50ml) – 1 “DOSE”

Pontuação (soma dos números assinalados em cada item): Baixo risco – 0 a 7 pontos; Uso de risco – 8 a 15 pontos; Uso nocivo – 16 a 19 pontos; Provável dependência – 20 a 40 pontos.

Consequências físicas do alcoolismo – O uso excessivo de bebidas alcoólicas pode afetar praticamente todos os órgãos e sistemas do organismo. O aparelho gastrintestinal é particularmente atingido. Podem ocorrer gastrites, úlceras, inflamação do esôfago, pancreatite; as lesões no fígado podem levar à cirrose. Outros aparelhos atingidos são o cardiocirculatório (podendo ocorrer pressão alta, infarto do miocárdio), o sistema nervoso (epilepsia, lesões em nervos periféricos) e o geniturinário (impotência). Podem ocorrer também doenças devido a deficiências de vitaminas e alterações no sangue. O uso de álcool por mulheres grávidas pode levar a malformações no feto com retardo mental, malformações no coração, membros, crânio e face (síndrome fetal do álcool).

Tratamento – O tratamento do alcoolismo é bastante complexo e depende do tipo de quadro que o paciente apresenta. Em termos genéricos, o primeiro passo é evidentemente a conscientização do problema e a interrupção total do uso de bebidas alcoólicas (abstinência). A chamada “desintoxicação” pode ser feita em casa ou, em casos mais graves, em hospital, mas sempre sob cuidado médico. Nesse período é feita também a avaliação e o tratamento dos danos físicos e mentais decorrentes do álcool.

Após a recuperação inicial, segue-se a manutenção da abstinência. A maioria dos trabalhos mostra que a abstinência deve ser total e completa. Uma “bebidinha” de vez em quando abre caminho novamente para a dependência na grande maioria dos casos. Assim, é preciso muito esforço e muito apoio para que a pessoa fique distante das bebidas alcoólicas e de outros produtos que contenham álcool.

Há alguns medicamentos que podem ajudar a manter a abstinência, os quais devem ser prescritos e seu uso acompanhado pelo médico. O mais conhecido deles é o Dissulfiram. Esse medicamento deve ser tomado diariamente; ele provoca uma reação extremamente desagradável se a pessoa que o utiliza faz ingestão mesmo de pequenas quantidades de álcool. Com isso, cria-se uma aversão ao uso do álcool. Outros medicamentos, entre eles, o Naltrexone, o Acamprosato e o Topiramato diminuem a vontade de beber e podem contribuir na recuperação.

A psicoterapia desempenha papel fundamental na recuperação. Procurar buscar com o paciente os motivos que o levam a beber e auxiliar na resolução dos conflitos permitem a construção de uma personalidade mais madura, capaz de lidar com as adversidades sem precisar se refugiar na bebida.

Os grupos de autoajuda (Alcoólicos Anônimos e outros) também são muito importantes na recuperação.